quinta-feira, 20 de outubro de 2016

DEIXAR DE FUMAR ENGORDA?

DEIXAR DE FUMAR ENGORDA?

O que leva as pessoas a fumar? Acreditem ou não, parece que a supressão do apetite é um motivo bastante comum, especialmente entre as adolescentes. E porque não deixam de fumar quando os efeitos nefastos para a saúde são tão evidentes? Uma das razões apontadas é o medo de engordar após cessação, embora poucos expliquem o motivo deste fenómeno. Será um facto ou um mito urbano? Infelizmente é uma verdade bem documentada e a que dificilmente se consegue escapar. O tabaco cria uma dependência metabólica que leva o seu tempo a reverter.
Julgo que nem os fumadores mais activos contestam o impacto brutal do tabaco no organismo. É um dos poucos agentes em que a relação causa-efeito está bem estabelecida com as doenças cardiovasculares e cancro. Mas mesmo para os que tentam deixar de fumar, não se trata de um processo simples que dependa apenas da força de vontade. A dependência à nicotina é uma realidade que muitas vezes necessita de acompanhamento especializado. Segundo alguns estudos, o ganho de peso quando se deixa o tabaco é um factor muito relevante tanto para o relapso como para desmotivar fumadores a largar a chucha.
A epidemiologia diz-nos que os fumadores têm um IMC inferior aos não fumadores. Lembre-se que estamos a falar a um nível populacional, macro, e não estamos a compará-lo com o vizinho do lado. Às vezes as percepções individuais não são representativas da população. A prevalência de obesidade nos EUA foi até já associada ao decréscimo no consumo que se tem verificado nos últimos anos. Os mecanismos por detrás deste fenómeno têm sido bastante estudados, tanto em humanos como em animais, mas permanecem ainda superficialmente conhecidos. De um modo genérico, resumem-se a 3 níveis: um efeito anorexigénico (redução do apetite), aumento do dispêndio energético, e os efeitos metabólicos da nicotina.
A redução do apetite é provavelmente consensual entre os fumadores. É provável que conheça alguém que fume antes das refeições de forma a controlar a fome. Quando este estímulo é suprimido, como nos recém-ex-fumadores, a fome é exacerbada. Mas será apenas uma compensação ao efeito gratificante da nicotina? Tudo indica que não e que se trata de uma desregulação do sistema de homeostase energética. Num estudo levado a cabo por Stamford e publicado em 1986, nas 48 horas seguintes ao último cigarro, o consumo calórico aumentou em 227 kcal/dia nos participantes. Em apenas 2 dias, estes indivíduos ganharam 2.2 kg, dos quais 96% foi gordura. No entanto, a maior parte do ganho de peso deu-se nos primeiros meses, normalizando com o tempo, sendo expectável que se trate de um fenómeno pontual que estabiliza rapidamente. Na globalidade, o ganho de peso ao final de um ano tem variado entre os 4 kg e os 11 kg, em média. Curiosamente, a tendência para ganhar peso com a cessação dos hábitos tabágicos parece ser maior em indivíduos com menos de 55 anos e naqueles que fumam mais de 15 cigarros por dia.
Existe uma teoria que tenta explicar este fenómeno. A hipótese do “set-point” postula que alterações no peso acima ou abaixo do “set-point” são contrariados por alterações nos hábitos alimentares e dispêndio energético. Julga-se que a nicotina reduza este “set-point” e que após cessação os ex-fumadores retornem ao seu estado normal, ganhando peso. Esta teoria é suportada por observações em cohortes: os fumadores pesam menos do que os não fumadores mas após cessarem o consumo de tabaco, ganham peso e a média iguala a verificada para os não fumadores. Aqueles que continuam a fumar mantêm um peso inferior. A utilização de pastilhas de nicotina não parece ajudar aqui. Quando se deixam as pastilhas, o peso parece aumentar exactamente da mesma forma.
O efeito da nicotina no neuropéptido Y (NPY) está bem documentada. Esta neurohormona está activamente envolvida na regulação do apetite e tem uma forte acção orexigénica (aumenta o apetite). A exposição ao fumo do tabaco diminui o NPY, independentemente do consumo energético, evidenciando um papel inibitório directo que contribui para a redução espontânea no ingestão calórica. Paradoxalmente ao que é regra na fisiologia, a diminuição de NPY não aumenta a expressão dos seus receptores. Pelo contrário, a nicotina parece diminuir a densidade de receptores Y no hipotálamo, amplificando o seu efeito supressor do apetite. Ainda há quem julgue que a vontade de comer é algo regulado pelo nosso consciente e fácil de controlar. Infelizmente está longe de ser assim tão simples. Existe um jogo hormonal que controla activamente estes processos e que não verga à nossa mera vontade. Se as suas exigências não forem satisfeitas, somos castigados com uma redução na taxa metabólica. Para que uma dieta seja bem sucedida a longo prazo, é necessário saber “ouvir” o nosso corpo e dar-lhe aquilo que precisa quando ele o pede. O problema é quando ele perde a sensibilidade e deixa de saber o que precisa, uma desregulação que, à excepção de algumas doenças raras, é derivada dos hábitos alimentares modernos. Mas não vamos fugir ao tema…
Não fosse a redução do consumo calórico já bastante, a nicotina induz também um estado hipermetabólico e ineficiência energética. Fumar um único cigarro pode aumentar o metabolismo em 3% até 30 min. Em fumadores regulares, fumar um maço de tabaco num dia aumenta o dispêndio energético em mais de 200 kcal/ dia. Após 30 dias de cessação, a taxa metabólica de repouso decresceu 16% em mulheres comparativamente ao verificado no período activo. A nicotina é um forte activador do sistema nervoso simpático e estimula a libertação de catecolaminas (adrenalina e noradrenalina). Estas hormonas têm um marcado efeito lipolítico através da estimulação da HSL (homone-sensitive lipase) e modelação da perilipina, para além de um acentuado efeito termogénico. São igualmente causa do aumento da pressão arterial, ritmo cardíaco e vasoconstrição que frequentemente se encontram em fumadores. Adicionalmente, foi já demostrado que a nicotina estimula a UCP1 e UCP3, proteínas desacopladoras da fosforilação oxidativa que reduzem a eficiência do metabolismo energético, dissipando energia como calor. No entanto, este processo não está bem caracterizado em humanos, nos quais o papel metabólico do tecido adiposo castanho não é ainda totalmente claro. O efeito lipolítico da nicotina pode também ser mediado por citocinas pró-inflamatórias como o TNF-alfa, aumentadas com a exposição crónica ao fumo do tabaco.
Na verdade, o excedente energético parece apenas explicar 69% da variação de peso verificada em quem deixa de fumar. Existem outros mecanismos que também aparentam ter um importante contributo. A exposição ao fumo do tabaco aumenta a expressão da AZGP1, um factor implicado na regulação do balanço energético que funciona como mobilizador de gorduras. Animais tratados com AZGP1 verificam uma marcada redução de peso corporal sem alterações nos hábitos alimentares. Esta proteína está também associada a doenças cuja sintomática inclui perda de peso evidente. Adicionalmente, o tabaco parece também aumentar a motilidade gástrica e assim diminuir a própria absorção de nutrientes, bem como modular a actividade da LPL (liporpoteína lipase) no músculo e tecido adiposo de forma diferencial.
Lendo isto, uma pessoa pode pensar duas vezes antes de por de lado o tabaco. De facto, o receio de engordar é um dos factores que desmotiva muitos fumadores a largar o vício, o que, como vimos, é um risco real. Mas compensará? Deixando o risco cardiovascular e de cancro de parte, o menor peso dos fumadores não reflecte na perfeição a sua composição corporal. Embora o BMI seja menor, os fumadores têm tendência a acumular gordura na zona abdominal. Esta gordura visceral é particularmente perigosa e está associada ao cluster de doenças que definem o Sindrome Metabólico. Este padrão de distribuição do tecido adiposo é pró-inflamatório e, uma vez que drena directamente para o fígado, exerce uma série de efeitos metabólicos nefastos que excedem a simples obesidade. Não se conhece ao certo a razão para o favoecimento da acumulação de gordura especificamente na zona abdominal mas uma hipótese forte pode ser sugerida. O tabaco promove um estado de inflamação sistémica e stress crónico, caracterizado por níveis elevados de cortisol e com um deficiente ritmo circadiano de secreção. Entre os mais leigos, existem duas correntes: os que desconhecem por completo o cortisol e os que o abominam. A verdade é que se trata de uma hormona essencial à vida, mas nas doses e alturas certas. O stress que caracteriza as sociedades modernas, no qual incluo o psicológico e físico, sono inadequado, etc, leva a uma completa inversão do padrão circadiano de secreção do cortisol no organismo. Entre as consequências está a acumulação de gordura visceral, imunossupressão, resistência à insulina, entre outros igualmente perniciosos. A tolerância à glicose é normalmente inferior em fumadores, muito provavelmente devido ao aumento de TNF-alfa e inibição da adiponectina. O aumento de ácidos gordos livres em circulação, num ambiente pró-oxidante, é meio caminho andado para a disfunção da sinalização insulínica
A literatura médica começa a referir cada vez mais aquilo a que se chama de “obesidade com peso normal”. Basicamente refere-se a uma percentagem de gordura excessiva para um peso ajustado à altura. É algo perfeitamente concebível se tivermos em consideração a menor densidade da gordura relativamente ao músculo. Estudos em animais indicam que a combinação do tabagismo com uma dieta moderna tradicional provoca uma perda desproporcional de massa magra. Embora a nicotina também aqui induza uma redução no BMI, esta não é acompanhada por um menor risco de doenças associadas à obesidade, nomeadamente as cardiovasculares e diabetes. Um dos efeitos mais marcados do tabaco é também a redução nos níveis de HDL, um fenómeno bem descrito em humanos e que contribui para o elevado risco de aterosclerose.
Era óptimo poder dizer que o ganho de peso após deixar de fumar é evitável, mas a verdade é que muito dificilmente se consegue contornar este choque metabólico que resulta da privação da nicotina. No entanto, parece que se trata de um processo passageiro e o corpo retorna ao seu equilíbrio em poucos meses. Tendo em conta que o menor peso corporal nem sequer contribui para uma redução do risco associado à obesidade, os efeitos nefastos no sistema cardiovascular e o potencial carcinogénico, parece-me que os benefícios de deixar de fumar superam em larga escala os efeitos menos desejáveis. Meia-dúzia de quilos que podem ser perdidos mais tarde parece-me um preço de saldo para efeito positivo que terá na saúde de uma pessoa.
Chen H, et al. (2006). Am J Respir Crit Care Med173:1248.
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Stamford BA, et al. (1986). Am J Clin Nutr43:486.
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