quinta-feira, 20 de outubro de 2016

“FAT TAX” – TAXAR A JUNK FOOD PODERIA AJUDAR A COMBATER A OBESIDADE?

“FAT TAX” – TAXAR A JUNK FOOD PODERIA AJUDAR A COMBATER A OBESIDADE?

Muito se tem falado da “Fat Tax”, uma medida provável no próximo Orçamento de Estado para ajudar no equilíbrio das contas públicas. Não se trata na verdade de um imposto sobre “a gordura”, mas sim sobre alimentos processados e altamente calóricos, ricos em açúcar, como a junk food e refrigerantes. Esta medida não é nova em países Ocidentais que tentam travar o flagelo da obesidade, e angariar mais uns trocos para os cofres do Estado. Temos o caso do Reino Unido, EUA, Austrália e países do Norte da Europa. Mas poderia esta medida ajudar realmente a combater a obesidade ou é apenas mais um imposto? É justa numa perspectiva social? É sobre estas questões que proponho abrir o debate.
Taxar a obesidade parece-me uma medida absurda e altamente discriminatória. Já nos anos 40, Carlson tinha sugerido um imposto progressivo sobre o peso corporal de forma a contrariar aquilo a que chamava um “luxo injurioso” e no sentido de aumentar a disponibilidade de alimentos para o esforço de guerra. Existem múltiplos factores que contribuem para a obesidade e nem todos derivam do desleixo e más práticas alimentares. A componente genética existe, bem como factores socioeconómicos, mas mesmo que assim não fosse, é inconcebível taxar pessoas pelo seu peso e pode mesmo ser considerado insultuoso. Para mais, as estatísticas dizem-nos que a obesidade é mais prevalente em grupos sociais desfavorecidos. Um imposto deste género seria altamente regressivo, com um impacto diferencial perverso nessa coisa do “Estado Social”.
Mas esta questão levanta uma outra com muito mais sentido e propriedade. Adoptar um imposto sobre junk food, particularmente os refrigerantes com quantidades estúpidas de açúcar. Na verdade, esta mesma taxa é defendida desde 2003 pela própria Organização Mundial de Saúde, que a sugere como uma medida preventiva da obesidade e doenças associadas. Embora a relação entre a obesidade e doenças como a aterosclerose, diabetes e hipertensão  seja aceite sem grande atrito e esteja já bem caracterizada, a literatura económica sobre o consumo calórico e obesidade está ainda na sua infância. Muito do que se discute é baseado no conhecimento empírico e em extrapolações de outros indicadores que se julgam ter um comportamento semelhante, como o tabaco por exemplo.
De forma a combater o consumo de junk food pela fiscalidade, podem ser seguidas três vias. Taxar a junk food, reduzir os impostos sobre alimentos considerados saudáveis, ou as duas em conjunto. De facto há quem sugira que o dinheiro desse imposto deveria ser usado para compensar uma redução da carga fiscal sobre os alimentos considerados saudáveis de forma a promover o consumo. Um estudo experimental realizado na Universidade de Buffalo abordou esta questão, concluindo que reduzir o preço dos alimentos saudáveis não melhora o conteúdo nutricional dos alimentos que as pessoas compram. Embora elas tenham seleccionado opções mais saudáveis, o dinheiro poupado era gasto em junk food. O comportamento humano é de facto enigmático. No entanto, quando os investigadores aumentaram o preço de alimentos como as batatas fritas ou hot-dogs, as pessoas reduziram a sua compra e optaram por frutas, frango, atum, entre outros, mesmo com o seu preço mantido constante.
Os refrigerantes têm sido um especial alvo das estratégias anti-obesidade. Um estudo coordenado pelo CDC, EUA, estima que um aumento em 10% no preço dos refrigerantes reduza o seu consumo em 8-10%. Um aumento de apenas 1 usd associa-se a um decréscimo em 124 kcal no consumo energético diário. Os mesmos autores estimam que se o estado de Nova Iorque adoptasse uma taxa de 18% sobre a junk food, iria resultar num declínio energético em 56 kcal/dia, que se traduziria teoricamente numa perda de 2.25kg/ano por pessoa, bem como uma redução na prevalência de todas as doenças crónicas associadas à obesidade.
Na Dinamarca e Noruega existem de facto impostos diferenciais aos alimentos que consideram o seu valor nutricional. São casos de estudo que merecem atenção, embora seja ainda prematuro retirar qualquer conclusão acerca da sua eficácia. São estratégias de combate à obesidade aplicadas muito recentemente para se verificar já um efeito. Mas talvez a introdução destas taxas esteja relacionada com uma maior consciência e maturidade social típica dos países nórdicos. De facto, a política fiscal na Noruega é estratégica e tem como objectivo:
  • Encorajar uma dieta saudável, reduzindo o consumo de gorduras saturadas e promovendo alimentos como os cereais integrais e vegetais;

  • Promover a produção doméstica e reduzir as importações;

  • Favorecer o desenvolvimento de áreas rurais pela agricultura;

  • Contribuir para a segurança alimentar mundial promovendo a produção e consumo em países pobres.

O curioso é que nestes países nórdicos a prevalência de obesidade já era das mais baixas da Europa, mesmo antes da introdução destas taxas. Foram adoptadas como medidas profiláticas, antes que o problema se amplificasse. De facto, na Dinamarca a obesidade infantil está a decrescer, em contra-ciclo com o resto da Europa. Mas o que faz a cultura nórdica singular e um exemplo a seguir é que a população viu a introdução destes impostos com bons olhos. Consideram que é da responsabilidade do Estado actuar quando a vontade individual leva na no mau caminho, e que a escolha continua a ser livre, apenas com um preço acrescido. Isto leva-nos então ao outro lado da argumentação. Será aceitável que o governo controle aquilo que comemos?
Este ponto é o argumento mais básico e que requer menos esforço mental. Os cidadãos devem ser livres de escolher o que comem e, porque não dizer, de serem obesos se quiserem. Mas será mesmo assim? Vivendo nós no tal “Estado Social”, em que os cuidados de saúde são pagos pelos impostos gerais, será justa a mentalidade de que “a saúde é minha, faço o quero”? Os defensores da taxação recorrem muito ao exemplo do tabaco para se justificarem. É claríssimo que o elevado imposto sobre o tabaco reduziu imenso o seu consumo. Pode não ser essa a percepção pública mas as estatísticas não mentem (geralmente…). Não só o consumo diminuiu consideravelmente como também diminuiu a incidência de doenças associadas ao tabaco. A questão é: as duas coisas são mesmo comparáveis? A relação entre o tabagismo e o cancro é linear. Quem fuma aumenta a probabilidade de vir a ter cancro em 1000% (é mesmo 1000%). Portanto, quando se impõem taxas elevadas verifica-se uma redução no consumo com um impacto directo na saúde. O problema é que não é clara e directa a associação entre a junk food e a obesidade. Nos últimos anos não só aumentou o consumo destes alimentos, com aumentou o teor energético geral da dieta. Além do mais, todos sabemos que a propensão a ganhar peso depende de pessoa para pessoa. Num trabalho intitulado “Can Soft Drink Taxes Reduce Population Weight”, a equipa de autores calcula o efeito que uma taxação de 58% nos refrigerantes teria no BMI em apenas -0.16. Na verdade, a maioria dos estudos favoráveis a um decréscimo no consumo calórico não têm em conta uma provável compensação energética de outras fontes, mesmo que “saudáveis”. Além disso, um outro argumento é o efeito regressivo destes impostos. Para além da maior incidência de obesidade nas classes mais baixas, são também estas que gastam uma maior percentagem do seu orçamento doméstico em alimentação, e em particular nos alimentos passíveis de imposto. É uma realidade incontornável.
Sistematizando os argumentos mais comuns contra a “Fat Tax”:
  1. “A saúde é minha, faço o quero”;

  2. Não existe uma relação linear entre o consumo de junk food e obesidade, e o aumento da sua importância na dieta decorreu em paralelo com um maior consumo calórico;

  3. O impacto destas taxas na obesidade é mínimo;

  4. Trata-se de um imposto regressivo, injusto socialmente.

São fundamentações legítimas mas discutíveis. Vou tentar desenvolver um pouco cada ponto e explicar a minha posição sobre o assunto.
1 – Como questionei anteriormente, será justo pensar dessa forma quando as despesas dos cuidados de saúde são distribuídas por todos? Isto não é justiça social… é uma imposição invertida. Não é justo que a população pague equitativamente pelos erros individuais e conscientes de cada um. O dinheiro proveniente de um imposto deveria ser usado para atenuar o impacto que as más práticas alimentares têm no Sistema Nacional de Saúde, e não ser incluído no orçamento geral do Estado. Repare que não falo em obesidade mas em más práticas alimentares… nem todas as pessoas com aterosclerose ou diabetes são obesas pois não? Um imposto sobre junk food não é discriminatório em relação ao peso, mas apenas quanto às escolhas nutricionais. Nem todas as pessoas com peso excessivo comem mal.
Curioso, ou não, é que a implementação de restrições alimentares às crianças, limitando aquilo que os bares escolares podem ou não vender e controlando as refeições servidas nas cantinas é aceite de forma pacífica e até fomentado por movimentos cívicos. Achamos que os nossos filhos devem ser “forçados” a uma alimentação saudável mas quando o assunto nos toca… alto lá! Somos tão bons a impor regras aos outros que não queremos para nós próprios…
2 – Não. Não existe de facto essa relação directa. Além disso não é a junk food que engorda… é o excesso de calorias. Isto seria válido se estivéssemos a pensar em taxar o IMC, o que não é o caso. Como disse, o alvo são as más práticas alimentares, independentemente do peso corporal. As gorduras trans, excesso de sal, açúcares, etc têm efeitos deletérios na saúde que não dependem exclusivamente da adiposidade corporal.
3 – É provável que impacto directo de um imposto seja mínimo de facto. Mas aqui entra a boa aplicação dos fundos gerados. Estes não devem ser incluídos no orçamento geral do Estado, nem sequer para atenuar o impacto directo no sistema de saúde. Deveriam sim ser utilizados para financiar um programa nacional de combate à obesidade decente que incida sobre a educação alimentar da população. Não se podem esperar efeitos imediatos… aprendamos com os países nórdicos. Há que ter horizontes mais distantes e pensar a longo prazo. Os benefícios que uma melhor cultura nutricional e, porque não dizê-lo, desportiva, podem ter tanto a nível de despesas sociais como da produtividade são imensos. A obesidade e as doenças que se associam a uma alimentação incorrecta não têm apenas um impacto directo no orçamento da saúde, mas são também causa de morbilidade e redução da população activa e produtiva. Além disso, a “batalha” com a indústria é desigual e fútil. Por cada euro que o Estado gaste, a indústria tem 100 para investir. Um imposto adicional iria de alguma forma equilibrar a balança.
4 – Se o virmos apenas por um prisma económico, então é regressivo sim. Aliás, da forma como está a ser considerado em muitos países é de facto socialmente injusto, e não apenas pela percentagem diferencial do orçamento doméstico destinado à alimentação. Note que quando se fala num imposto sobre junk food, pensa-se em quê? Refrigerantes, açúcares, batatas fritas, aperitivos… todos alimentos baratos e que são bastante consumidos por pessoas mais pobres. Alimentos como os queijos, charcutaria e outras coisas mais gourmet, têm de ser também incluídas. Quando consideramos a hipótese de introduzir um imposto sobre alimentos menos saudáveis temos de considerar um factor que se chama de elasticidade do preço. Basicamente trata-se da possibilidade de substituir um alimento por outro que não difere substancialmente no preço. Por exemplo, se taxarmos o leite gordo, temos um substituto a preço semelhante, o meio-gordo ou magro. No entanto, se taxarmos as batatas fritas não existem outras opções imediatas que as substituam. Ora, um imposto bem aplicado tem de incidir mais sobre alimentos muito elásticos porque os substitutos existem e o impacto diferencial nas classes é atenuado. De qualquer forma, ninguém me convence que comer barato é sinónimo de comer mal. O que falta é uma educação alimentar que é especialmente patente nas classes desfavorecidas. Repare que também não proponho uma taxa a ingredientes básicos, mas apenas a produtos confeccionados. Vão me dizer que os chocolates, bolachas, refrigerantes, pizzas, refeições pré-confeccionadas e congeladas, gelados e outras guloseimas são essenciais e que não podem ser substituídas por carne, peixe, cereais, legumes e fruta?
Quanto à batalha fútil que se tenta travar com a indústria alimentar, ela também está presente dentro da própria indústria. Existe uma desigualdade nos custos de produção que favorece claramente os alimentos processados, de elevado teor calórico e de pouco valor nutricional. Um estudo que começou em 1985 abordou a evolução dos preços dos alimentos tendo em conta a inflação e concluiu que enquanto o preço dos vegetais, fruta e leite aumentou consideravelmente, o valor real dos refrigerantes diminuiu em 48%. Se pensarmos na unidade correcta, preço/kcal, deparamo-nos com um fosso enorme entre alimentos nutritivos, “saudáveis”, e a junk food. Daí se sugerir que o aumento da carga fiscal sobre os últimos deva ser acompanhado por uma redução no preço final e apoio à produção dos primeiros. Pessoalmente acho esse excedente melhor empregue no combate à obesidade e educação alimentar, e que isso teria melhores resultados futuros. Mas será uma abordagem autoritária contra a indústria a solução? Não acho. A solução está com a indústria e não contra a indústria. É preciso trabalhar em conjunto para o interesse comum. A taxa não deve incidir sobre a indústria, mas sim sobre o consumidor. Lembre-se que o objectivo é promover as boas práticas alimentares e não punir a industria enriquecendo os cofres do Estado.
Concluindo, um imposto sobre uma lista de alimentos processados (nunca ingredientes básicos), estabelecida com critérios bem pensados de forma a assegurar justiça social, faz todo o sentido. Esse dinheiro deverá, total ou parcialmente, ser usado no financiamento de uma estratégia séria a nível nacional para combater as más práticas alimentares e fomentar o exercício físico. Embora todos saibamos que não irá ser. Este programa deve envolver a própria indústria, atenuando o impacto do imposto. Não se trata de uma taxa sobre o peso, mas sim sobre o consumo de alimentos com malefícios comprovados ou com fortes indícios de prejudicar a saúde. Não interessa ser magro ou gordo… as escolhas alimentares é que contam. E escolha é a palavra-chave, mas a opção deve ter uma responsabilidade atribuída ao indivíduo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário