Lições do Oriente: o stress, aculturação, e a doença cardiovascular
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Marmot optou por uma abordagem diferente. Estudou apenas os indivíduos de origem Japonesa que viviam na Califórnia sob a hipótese de a cultura ser um factor relevante para a maior incidência de doença coronária em terras do Tio Sam. O gráfico abaixo representa a prevalência de doença coronária consoante o nível de aculturação, por classe etária. Em indivíduos mais aculturados, com um estilo de vida Ocidental e que renegaram os seus hábitos ancestrais (“non-traditional”), a incidência de doença coronária era superior em todas as classes etárias. Consequentemente, japoneses-americanos que mantinham as suas tradições (“traditional”) eram menos afectados por aterosclerose coronária. Mais uma vez o colesterol, pressão arterial e hábitos tabágicos não explicavam este fenómeno.
Mas a alimentação poderia explicá-lo se a teoria dieta-coração de Ancel Keys (“Diet-Heart”) fosse verdadeira, algo que cada vez menos pessoas punham em causa após o grande sucesso do Seven Countries Study entre a comunidade médica. Mas também não era por aí. Na verdade, foi encontrada uma “associação negativa” entre o padrão alimentar e a doença coronária. E a expressão do relatório original, “associação negativa”, diz tudo sobre os preconceitos relativos à hipótese Diet-Heart. A dieta rica em gorduras estava já conotada como potenciadora de doença cardiovascular. Mas as voltas saíram trocadas.
Ambos os gráficos acima representam as mesmas variáveis para duas classes etárias distintas: a prevalência de doença coronária (CHD %), preferências alimentares (Japonesa ou Ocidental), e aculturação (estilo de vida tradicional japonês e adopção dos hábitos Americanos). O resultado mais curioso é que as pessoas com uma dieta ocidentalizada (“western”) tinham menos doença coronária do que quem preferia comida tradicional, pobre em gordura (3.4% vs 8% para <45 anos e 6.9% vs 11.3 para 45-54 anos), apesar da diferença ser pouco significativa. A diferença no teor de gordura entre o padrão alimentar Japonês e Ocidental era de 10%, semelhante ao verificado entre a população Grega e Americana no Seven Countries Study de Ancel Keys. Se neste foi encontrada uma relação, também no trabalho de Marmot o deveria ter sido. Foi… mas ao contrário.
Mas o mais relevante neste âmbito é a maior prevalência de doença coronária naqueles que adoptaram um modo de vida ocidental, independentemente da alimentação. Falamos de aspectos como educação, língua, ocupação profissional e, acima de tudo, estrutura social. O grupo que se aculturou à vida californiana tinha mais do dobro da frequência de doença coronária. Além disso, os menos aculturados apresentavam uma prevalência semelhante à verificada no Japão. Por seu lado, a prevalência nos Japoneses que assimilaram a cultura Americana era similar à dos Caucasianos nativos nos EUA.
As conclusões deste trabalho seminal de Marmot apontam para um impacto superior dos aspectos sociais e culturais comparativamente aos factores de risco tradicionais e modificáveis, como a dieta, perfil lipídico, tensão arterial e tabagismo. A cultura Americana difere da japonesa do dia para a noite. O Japão enfatiza a coesão de grupos, sucesso comunitário e estabilidade social. Estas características quase que antagonizam a sociedade Americana, virada para a mobilidade social e geográfica, e ambições individuais de carreira e estatuto. Este estudo de Marmot suporta a ideia de que uma sociedade estável, cujos membros gozam o apoio dos seus pares em grupos unidos pode proteger contra o stress social que leva à doença, neste caso do foro cardiovascular.
Mas as características que descrevi não são exclusivas da cultura japonesa, mas comuns em sociedades tradicionais como a Italiana, Grega e Jugoslava, na altura do Seven Countries Study. Recordam-se do estudo de Stuart Wolf em Roseto, EUA [LINK]? A preservação da cultura Italiana protegia-os da doença coronária, mesmo quando os hábitos alimentares assustavam qualquer médico “paradigmatizado” (passo o neologismo). O trabalho de Marmot com Japoneses residentes nos EUA vai no mesmo sentido, uma direcção que não desperta grande interesse na comunidade médica estabelecida.
Que interesse poderia ter recomendar “contra o stress”? Alterar o estilo de vida preconizado pela sociedade actual. Aliviar a carga de trabalho para que a predação do sistema socioeconómico Ocidental não nos roube uns bons anos de existência. Relaxar… Libertarmo-nos dos constrangimentos sociais e da necessidade de ir ao encontro de expectativas. É muito mais fácil procurar culpados que possamos manipular com drogas ou alteração de comportamentos simples. O colesterol, a pressão arterial, a dieta e exercício. São áreas onde se pode intervir e altamente lucrativas.
A aculturação e outros constrangimentos socioeconómicos são variáveis muitas vezes esquecidas e entendidas como secundárias em estudos de avaliação de risco, que se focam nos comportamentos modificáveis. Afinal, o que se pode fazer em relação a isso? Mudar toda uma estrutura social e económica? O problema é estruturante, mas sabemos que o ambiente que criamos e onde estamos inseridos define aquilo que somos, e para onde vamos.
Marmot M e Syme L (1976). Acculturation and Coronary Heart Disease in Japanese-Americans. American Journal of Epidemiology. 104(3):225-247.
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